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Lido com Esporte: Passe de Letra

By 9 de setembro de 2016 outubro 31st, 2016 No Comments

Por Marcos Eduardo Neves

O problema de fazer amizade é confundir o pessoal com o profissional. Digo isso porque demorei a ler “Passe de Letra – Futebol & Literatura”, um primor de livro tecido com finesse ímpar pelo premiado escritor Flávio Carneiro.

Desde que nos conhecemos, em um programa de televisão, nos aproximamos. Menos em campo, onde fico no gol e ele, no polo oposto: é atacante. Boas resenhas entornadas, ele me presentou com a obra e, confesso, me rasgo por não tê-la lido antes. Coloquei o exemplar na prateleira e devotei prioridade aos que por lá já coabitavam. Até que, durante um amistoso contra o time de amigos do Zico, Flávio presenteou com o mesmo produto o nosso ídolo em comum. Menos de uma semana se passou e o Galinho de Quintino me mandou mensagem se derretendo em elogios ao texto de Carneiro. Decidi me certificar, tal qual São Tomé. Hoje, posso afirmar, dei-me conta de quanto tempo perdi. A leitura é deliciosa. Principalmente para quem ama futebol e literatura.

Flávio Carneiro é goiano. Mas antes de se tornar escritor, roteirista e professor de Literatura, aventurou-se pelas quatro linhas. A maior parte do livro são “causos” vividos pelo autor durante sua infância e juventude, quando encarava a ponta direita, o flanco destro do tapete verde, rumo às metas adversárias.

“Como a literatura, o futebol também guarda no seu baú histórias de todo tipo. O drama, a tragédia, a comédia, o suspense, tem para todos os gostos. E para cada uma delas há um narrador. O narrador não é apenas uma voz, é a alma da história”, conta ele na página 134, no capítulo “O narrador”, no qual filosofa, principalmente, sobre a diferença de transmissão entre um jogo no rádio e o mesmo na tevê.

Ao longo das 167 páginas do livro – coletânea de colunas escritas para o jornal “Rascunho”, de Curitiba, e compiladas pela editora Rocco, em 2009, com direito a prefácio de Luís Fernando Veríssimo – há analogias interessantes. Como as comparações entre um jogo e um conto fantástico e a que faz do futebol em relação à literatura.

Há momentos de pura sensibilidade. Como a experiência que passou diante de um menino cubano que preferiu ser goleiro para abraçar e não chutar, o que a seu ver era maltratar, a pelota. Mas há tensão e dor. Como na hora em que, por causa de uma gripe, perdeu, aos 11 anos de idade, a chance de disputar a preliminar de um Goiás x Santos, em 1973. Para piorar, soube que ninguém menos do que Pelé tirou foto com todos seus companheiros de equipe.

E o que falar da dúvida cruel que lhe assombrou aos 18 anos? Em 1980, teve de optar entre a razão e o coração. Passara com louvor na faculdade, mas recebeu, à mesma época, convite para se profissionalizar em Campinas, defendendo o Guarani, campeão brasileiro de futebol havia dois anos.

Flávio demonstra a emoção do gol que marcou no Serra Dourada, numa partida em que fez dupla de ataque com Cacau, ex-Fluminense e Corinthians na segunda metade dos anos 80. E relata o episódio da vingança de um zagueiro que enfrentara. Jurado desde a partida anterior, salvou-se da marcação desleal e violenta ao trocar a camisa 7 pela de número nove.

Pisadas na bola, o que é comum até mesmo entre craques, se ele deu foi de leve. Ao explicar a origem do termo gandula, enganou-se ao dizer que o argentino Bernardo Gandulla, que devolvia as bolas chutadas para fora em São Januário, tomara a lenda para si na época da construção do Maracanã – na verdade, foi cerca de 10 anos antes. E quanto à frase “Se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia um”, garante que a sacada é do folclórico Neném Prancha, mas há controvérsias: correntes afirmam que tenha sido proferida pelo polêmico João Saldanha, que convocava não damas e sim feras.

No entanto, o livro é de se tirar, ou melhor, se dar um chapéu. A palestra que agendou para a azada hora de Brasil x Holanda, semifinal da Copa do Mundo de 1998, quando tentavam em vão tirá-lo do hotel para conduzi-lo ao auditório sem saber que um jogo – ora, qual! – poderia terminar não em 90, mas em 120 minutos, é hilária. Isso que a partida em questão demorou ainda mais: foi resolvida apenas nos penais.

Livraço, que indico, recomendo e faço o que mais for preciso. Leitura obrigatória para boleiros e acadêmicos. Obra digna de um craque das Letras e, acredite, das letras.